Estuprada pelo pai, uma
menina paraguaia de 12 anos teve sua primeira gravidez aos dez. Em 2015, com 21
semanas de gestação, media 1,39 m e pesava 34 quilos. Ainda que tenha sido
vítima de violência sexual e que as chances de uma menina menor de 15 anos
morrer no parto sejam quatro vezes maiores que as de uma mulher acima de 20, o
Estado daquele país não autorizou o aborto. A súplica da mãe da vítima e a
medida cautelar requerida por organizações internacionais foram ignoradas pelo
governo paraguaio que se negou a enquadrar o caso como aborto terapêutico –
única situação em que é permitido no país. O questionamento sobre a situação
das meninas latino-americanas, a partir do caso, levou o Cladem (Comitê
Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) a elaborar a
pesquisa “Niñas
madres. Embarazo infantil forzado em América Latina y El Caribe”, publicada
em 2016. A flagrante violação dos direitos das meninas, revelada no diagnóstico
em 14 países, está sendo denunciada na campanha internacional #EmbarazoInfantilForzadoEsTortura (gravidez
infantil forçada é tortura).

Segundo relatório da
Organização das Nações Unidas (ONU), a América Latina é a segunda região
do mundo com maior prevalência de maternidade infantil, depois da África – onde
em alguns países meninas são obrigadas a casar. Apesar das diferenças nos anos
de registro de gravidezes e partos entre os países (variação entre 2014 e
2016), o levantamento atualizado pelo Cladem Jugar
o Parir – Embarazo Infantil Forzado en América Latina y el Caribe detectou
na região pelo menos 75.559 mil nascimentos em que as mães são menores de 15
anos.
O estudo identificou que a
cada ano milhares de meninas ficam grávidas por abusos sexuais e são forçadas a
continuar a gravidez devido a “legislações baseadas em crenças e não em
direitos”.
“Há uma lógica patriarcal de
controle do corpo da mulher, neste caso de meninas. Isso também é fruto da
ausência do Estado laico”, analisa Elba Núñez, coordenadora regional do Cladem.
No mundo, os partos de
meninas nessa faixa etária alcança a cifra de 1.100.000 por ano. Em geral, as
taxas de fertilidade dos adolescentes são maior nas áreas rurais e entre as
meninas mais pobres e com menor nível educacional.
Campanha
A campanha #EmbarazoInfantilForzadoEsTortura denuncia
a impunidade da violência sexual contra meninas e exige o reconhecimento da
gravidez forçada como tortura. É pedagógica ao distinguir gravidez na
adolescência – que pode ser fruto de uma iniciação sexual precoce – de gravidez
na infância, caracterizada na maioria das vezes pela violência sexual exercida
por integrantes da família ou conhecidos.
O estudo esclarece que no
momento em que a menina se torna mãe são cometidos três tipos de violação: “o
primeiro, impondo um relacionamento sexual indesejável; o segundo, forçando-a a
realizar uma gravidez que não procurou; e o terceiro, obrigando-a a ser mãe
contra a vontade”.
Entre as onze recomendações
e conclusões do balanço estão a tipificação do estupro incestuoso – um dos
motivos mais comuns de gravidezes infantis na região – no código penal e a
criminalização da gravidez e maternidade infantil forçada, penalizando aqueles
que impeçam o acesso ao aborto.
“Trata-se de uma tripla
tortura converter meninas em mães. Estamos falando de uma flagrante violação
que estava naturalizada, invisível pela influência fundamentalista, ausência de
leis e políticas que tratem dessa problemática. Está relacionada ao nível de
impunidade. Começamos a dizer incansavelmente que isso existe e exigir que
estados cumpram, previnam, punam e erradiquem essa prática”, afirma Elba.

Aborto
A América Latina possui as
legislações mais restritivas para a prática do aborto e o acesso a
contraceptivos ou anticoncepção de emergência pode ser difícil ou impossível
para uma menina. A interrupção é proibida em todas as situações em países como
El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana. O estudo apontou que
em outros países, apesar da violação ou os riscos para a saúde ou a vida serem
causais que permitem o término da gravidez, o acesso ao direito foi negado em
muitas ocasiões ou não existem protocolos para implementá-lo.
A campanha exige que os
estados cumpram o compromisso internacional do Consenso
de Montevidéu sobre População e Desenvolvimento – aprovado por
representantes de 38 países em 2013 – de tornar efetivas ações que levam à
erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres e meninas.
A gravidez infantil forçada
ocorre quando uma menina fica grávida sem ter procurado ou desejado, e a
interrupção é negada ou dificultada.
Desde 1998 a gravidez
forçada é considerada um crime de guerra ou contra a humanidade pelo Estatuto
de Roma – tratado que estabeleceu a Corte Penal Internacional – quando as
gravidezes e as maternidades infantis são cometidas no contexto de um conflito
armado.
“Nossa luta é para instalar
o tema da gravidez infantil forçada como uma forma de tortura, conforme
estabelece a Corte Internacional. Mesmo em contexto de paz e em supostas
democracias, as meninas estão sendo triplamente torturadas”, manifesta a
coordenadora do Cladem.
Números
O estudo revelou que há um
“padrão de violência estruturado no ocultamento da informação e renúncia dos
estados de colocar a pauta na agenda pública”. Nos 14 países estudados não
há dados oficiais sobre gravidez de meninas com menos de 14 anos – exceto em El
Salvador. Os números disponíveis sobre as gravidezes são os mesmos dos partos
de meninas dessa idade. Não é possível saber nem mesmo se tiveram acesso aos
cuidados pré-natais ou quantas gravidezes resultaram em abortos. As
estatísticas sobre gravidez na adolescência formada a partir de diferentes
idades, em geral até 19 anos, tampouco permitem uma avaliação adequada da
situação das meninas.
Apenas o Brasil e El
Salvador fornecem alguns dados sobre gestação nessa faixa etária. Em 2013,
28.236 meninas realizaram pré-natal no Brasil. O país é um dos quatro que têm
dados sobre a mortalidade materna nesse grupo. Registrou 26 mortes em 2010; 16
em 2011; 23 em 2012 e 14 em 2013.
Segundo o Datasus (banco de
dados do Ministério da Saúde), que reúne os registros de maternidades e
cartórios, 305 mil brasileiras de 10 a 14 anos tiveram filhos entre 2005 e
2015. Somente em 2015, foram registrados 26.700 nascimentos.
Em El Salvador havia 1.540
gravidezes infantis em 2013, constituindo 1,9% do total. Apenas dois terços
dessas gravidezes (1.057) chegaram ao parto. Segundo o estudo “Abortus
interruptos: política e reforma legal do aborto no Uruguai”, em
2011, o suicídio foi a causa mais comum de morte em El Salvador entre
meninas e adolescentes de 10 a 19 anos. Metade delas estava grávida.

Imagem extraída do estudo (Foto: Lorena Espinoza)
Educação sexual empodera
A educação sexual integral é
tida como chave entre todos os programas para prevenir a gravidez infantil,
impactando diretamente no “empoderamento de meninas e meninos que podem se opor
com maiores recursos a relações sexuais não desejadas”. A implementação desses
programas, no entanto, têm sido dificultada na maioria dos países pelos setores
conservadores.
No Brasil, a campanha
iniciada em 2015 para retirar a palavra gênero dos planos de educação resultou
na eliminação das normas sobre educação sexual em quase todo os planos
estaduais. A Unesco defende que a educação sobre sexualidade e gênero deve
começar desde os cinco anos para meninas e meninos. Isso nunca foi implementado.
“Estamos disputando o que já
havíamos conquistado. São os chamados grupos anti-direitos que apontam
cumplicidade com essas violências. Ao privar a perspectiva de gênero estão
naturalizando o abuso sexual e condenando meninas à maternidade forçada. A
gravidez forçada pode ser considerada, em último caso, pena de morte, se
pensarmos que os riscos de uma menina grávida morrer é quatro vezes maior”,
examina Elba.
O levantamento diagnosticou
a falta de “supervisão efetiva” para evitar o uso instrumental das mulheres –
incluindo meninas – recorrente nos países onde é difícil acessar a interrupção
da gravidez resultante de estupro. Muitas casas de apoio e abrigos oferecidos
pelo Estado são mantidos por igrejas, cujos discursos valorizam o estereótipo da
procriação em lugar da autonomia reprodutiva da mulher. Os países também são
omissos com a responsabilidade de monitorar se há uma conexão entre esses
abrigos e organizações de adoção.
“A manutenção da gravidez de
meninas é sempre resultado de um delito relacionado a uma intervenção
psicológica de tortura e a processos de cooptação grave, especialmente quando é
motivada pela defesa da adoção”, observa a representante.
O Comitê Cedaw (Convenção
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e o
Comitê sobre os Direitos da Criança catalogaram a gravidez forçada e os
casamentos infantis como práticas nocivas que afetam seriamente os direitos das
meninas.
Impactos
à vida das meninas segundo o estudo
– Quase metade das meninas
que experimentam gestações forçadas abandonou a escola;
– Há mais chances de complicações durante a gravidez e parto, que nesta idade são de alto risco;
– Aumentam os riscos de pré-eclâmpsia, eclâmpsia, rompimento de membranas, parto prematuro e diabetes gestacional;
– Cinco vezes mais chances de fístula obstétrica;
– Consequências para a saúde mental como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático;
– Maior risco de desenvolvimento de pensamentos suicidas;
– Oportunidades de trabalho mais restritas.
– Há mais chances de complicações durante a gravidez e parto, que nesta idade são de alto risco;
– Aumentam os riscos de pré-eclâmpsia, eclâmpsia, rompimento de membranas, parto prematuro e diabetes gestacional;
– Cinco vezes mais chances de fístula obstétrica;
– Consequências para a saúde mental como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático;
– Maior risco de desenvolvimento de pensamentos suicidas;
– Oportunidades de trabalho mais restritas.
Aborto
para meninas até 14 anos é direito no Brasil
O parto de uma brasileira de
dez anos em Belo Horizonte, também em 2015, é outro exemplo de descaso citado
no balanço. Ninguém sabia da gravidez da menina, até que ela entrou em trabalho
de parto e foi levada às pressas por professores ao hospital. O bebê de setes
meses nasceu saudável apesar da pouca idade da menina. A suspeita é que tenha
sido estuprada pelo seu padrasto de 40 anos, que já era acusado de violação de
uma criança e posse ilegal de armas de fogo.
A interrupção da gravidez é
permitida no Brasil em caso de estupro, gravidez que coloque em risco a vida da
mulher e anencefalia fetal. Para a legislação, o aborto legal é sempre um
direito das meninas nessa faixa etária, já que o Código Penal define como
“estupro de vulnerável” o ato de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato
libidinoso com menor de 14 anos, independentemente de ter havido violência
real”.
A Secretaria de Direitos
Humanos informa que há três relatos de abuso sexual de meninas e
adolescentes por hora. A violência sexual é a quarta violação mais recorrente
contra crianças e adolescentes relatada ao Disque Direitos Humanos (Dique 100).
De acordo com o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública de 2017, o Brasil registrou 49.497
ocorrências de estupro em 2016. Do total, 70% são crianças e adolescentes,
conforme estudo do
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), publicado em 2014, com base em
dados do Sinan. O órgão estima que cerca de 7,1% dos casos de estupro levem a
uma gestação.
A análise comparada dos dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de
Notificação) com o Sinasc (Sistema de Nascidos Vivos) de mães até 13
anos, no período de 2011 a 2015, mostra notificação de 32.809 estupros que
culminaram em gravidez. Os números de aborto legal, no entanto, estão muito
abaixo. Em 2016, foram realizadas 1.678 interrupções nos hospitais do
país (incluindo todas as situações legais), segundo informou o Ministério
da Saúde (MS). Mato Grosso do Sul, o estado que registrou a maior taxa de
estupros nesse ano, conforme o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública – 54,4 para cada 100 mil habitantes –
realizou somente duas interrupções por esse motivo.
A norma técnica do MS Prevenção
e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e
adolescentes visa garantir o acesso ao aborto legal. Entre as
barreiras, porém, estão a falta de informação acerca do direito e de quais
hospitais realizam o serviço no país. A assessoria de imprensa do ministério
informou que as unidades conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) que tenham
maternidade devem disponibilizar o procedimento, o que não acontece na prática.
Paula Guimarães
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