terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O Zika vírus ameça, o Governo não investe na saúde pública e as mulheres trabalhadoras são, mais uma vez, penalizadas!


Até alguns meses atrás a epidemia que mais se falava com o início do Verão era a Dengue. No entanto, este ano o vilão mudou, chama-se Zika e hoje é um dos grandes receios da população brasileira e muito especialmente das  mulheres grávidas.
“Estamos assistindo ao surgimento de uma geração de sequelados. O impacto será gigantesco”[1] são as palavras da chefe do serviço de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, do Recife. Existe essa possibilidade, mas acreditamos que o governo tem os meios para diminuir ao máximo o impacto desta epidemia ainda que para isso tenha que fazer algo que nunca se dispôs a fazer: Colocar os seus recurso financeiros e materiais a serviço da saúde e bem-estar da classe trabalhadora e deixar de financiar banqueiros e multinacionais.

Onde surgiu e o que é o Zika vírus?

O vírus Zika pertence a um grupo de vírus designados flavivírus (“vírus amarelos”) juntamente com o vírus da Dengue e Febre Amarela. Estes vírus são transmitidos por mosquitos, do gênero Aedes (que significa odioso em grego). Existem várias espécies de mosquito Aedes mas o que circula majoritariamente na América Latina é o Aedes aegypti  (odioso do Egito) e é ele que transmite o vírus no Brasil.
O Zika vírus foi introduzido no Brasil, possivelmente, por turistas que vieram assistir à Copa do Mundo em 2014. Nesse mesmo ano, foi publicado um estudo que conclui que o virús Zika sofreu um processo importante de mutações e que já era possível definir duas linhagens diferentes do vírus: a Africana e a Asiática[2]. É esta última linhagem que circula neste momento no Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador, Guatemala, Mexico, Paraguai, Suriname e Venezuela.[3]
Em Fevereiro deste ano (2015) foram notificados, ao Ministério da Saúde (MS), cerca de 6.800 casos de doença exantemática, ou seja com erupções vermelhas na pele,  sem causa definida na Região Nordeste. Todos os casos apresentaram evolução benigna e cura espontânea. Em 29 de Abril, pesquisadores da Universidade Federal da Bahia anunciaram a identificação do vírus Zika como causador dessa doença. Neste momento o vírus já foi identificado em 20 estados Brasileiros, só estando livres os estados de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Acre[4], no entanto acreditamos que é apenas uma questão de tempo para que surjam casos nestes estados.

Como é transmitido e que doenças causa o vírus Zika?

Até o momento só a doença exantemática é comprovadamente causada de forma direta pelo vírus Zika. A síndrome de Guillain-Barré e a microcefalia em recém-nascidos, filhos de mães que contraíram Zika durante a gravidez, estão relacionadas com a infecção, mas ainda não se têm a certeza de por qual mecanismo.
80% das pessoas infectadas pelo vírus não apresentam qualquer sintoma e 20% apresentam uma síndrome com a presença de erupções vermelhas na pele (exantema) e coceira, febre, conjuntivite, dores musculares e das articulações e cefaleia. Nem todos os sintomas estão presentes, os três primeiros referidos são os mais comuns.
A síndrome de Guillain-Barré (SGB) é uma doença auto-imune em que o sistema imunológico ataca o revestimento as células nervosas (a bainha de mielina). A doença caracteriza-se por fraqueza muscular de gravidade variável, formigamento e dores musculares. Não existe tratamento específico para esta doença, normalmente as pessoas recuperam totalmente ainda que algumas podem necessitar de fisioterapia para recuperar. Apesar de ainda não ter sido comprovado, acredita-se que haja relação entre a infecção por Zika e a SGB pois tanto no Brasil como na Polinésia Francesa houve um aumento de casos de  SGB durante o surto de Zika. Os estados do Nordeste tiveram um aumento de 50-100% do número de casos de SGB este ano.

A microcefalia não é uma doença em si, mas um sintoma. Medidas como o peso, comprimento/altura e perímetro cefálico variam muito nos seres humanos. Para avaliar estas medidas nas crianças, desde o nascimento, usam-se, no Brasil, as curvas de percentis, elaboradas pela OMS, que podemos encontrar nas cadernetas de saúde infantil. Estas curvas são medidas estatísticas que nos dizem qual a percentagem da população que tem um determinado valor de peso, altura ou perímetro cefálico. Quando se afastam muito da média (percentil 50) podem indicar a presença de doenças. Em recém-nascidos (RN) de termo (mais de 39 semanas de gestação) normalmente é diagnosticada quando o perímetro cefálico é inferior a 32cm, com base nas curvas da OMS, que levam em conta amostras da população a nível mundial.
A microcefalia pode ser causada por várias doenças durante a gravidez (rubéola, toxoplamose, HIV, Sífilis, etc) e também por alguns medicamentos ou drogas como o álcool. Porém, no dia 22 de Outubro deste ano a Secretaria de Saúde de Pernambuco notificou o MS de um aumento dos casos de microcefalia, até então tinham sido registrados 26 casos.[5] Para se ter uma ideia, no final do ano anterior, 2014, tinham sido registrados 12 casos em Pernambuco, ou seja menos de metade.[6] Desde essa data para cá o número de casos aumentou exponencialmente. No momento em que escrevo este texto já são mais de 1700 casos a nível nacional, só na primeira semana de Dezembro o número de casos suspeitos de microcefalia aumentou 41%, passou de 1248 para 1761.[7]
A relação entre o aumento do número de casos de microcefalia e a infecção por zika vírus foi estabelecida por vários fatos entre os quais destaco os mais significativos: 1) entrevistas com mais de 60 gestantes, que tiveram doença exantemática na gravidez e cujos filhos nasceram com  microcefalia, sem histórico de doença genética na família e/ou exames que evidenciassem outras causas de microcefalia; 2) Identificação de casos de microcefalia também na Polinésia Francesa coincidentes com surto de Zika vírus; 3) Identificação do vírus Zika em líquido amniótico de duas gestantes cujo feto apresentava microcefalia, no interior da Paraíba; 4) Identificação do vírus Zika em tecidos de recém-nascido que morreu 5 dias depois do parto, no estado do Ceará, e que tinha sido diagnosticado com microcefalia durante a gravidez.5
A OMS também reconheceu a relação entre a infecção pelo Zika e o aumento de casos de microcefalia, mas afirma que ainda não se pode afirmar com certeza que a infecção pelo vírus seja a causa direta da microcefalia ou se existem outros fatores associados.
A microcefalia não tem cura, só é possível o tratamento de suporte para as doenças neurológicas associadas (epilepsia, por exemplo) e terapias que ajudem a ultrapassar os déficits cognitivos e motores (fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional).

Aumentam os casos de microcefalia e o governo segue querendo reduzir custos!

A medida que define microcefalia é controversa. Normalmente é estabelecida quando a medida de perímetro cefálico estáabaixo do 3º Percentil para a idade e sexo, ou seja 32 cm nos RN de mais de 39 semanas de gestação. Para os RN com menos semanas de gestação/prematuros existem tabelas específicas.
Na primeira nota informativa lançada pelo governo, publicada a 17 de Novembro7, este estabelece como medida de corte 33 cm de perímetro cefálico para notificação de microcefalia. Esta decisão visava aumentar a sensibilidade na detecção de casos de doença. Como disse acima, o perímetro cefálico de 33 ou 32cm não define por si só doença, é um marcador para fazer exames complementares que avaliem se existe ou não doença. Ao estabelecer uma medida de corte mais elevada está-se na prática a aumentar a população que será submetida a exames complementares e acompanhamento médico para diagnosticar se existe ou não doença, o que seria correto na atual situação.
No entanto em nota publicada no dia 7 de Dezembro o governo voltou atrás reestabelecendo a medida de 32 cm para notificação de microcefalia: “Até o dia 28 de novembro, o Ministério da Saúde havia recebido 1.248 notificações de casos suspeitos. Todos esses casos têm medida craniana igual ou inferior a 33 cm. Na primeira triagem desses casos suspeitos, muitos dos diagnósticos realizados precocemente e preventivamente já foram descartados. A nova medida visa agilizar os procedimentos clínicos, sem descuidar dos bebês que fizeram parte da primeira lista de casos notificados.”[8]
Ou seja, o governo deixa entender que houve RN com 33 cm de perímetro cefálico em que não se comprovou que eram saudáveis, mas que ainda assim a partir de agora só vão ser seguidos os RN com 32 cm de perímetro cefálico para “agilizar os procedimentos clínicos”. Ou seja, na prática, uma parte dos bebês afetados pode não ser devidamente acompanhada para diminuir os gastos do SUS.
Consideramos que por enquanto se devia manter como medida de referência os 33cm, explicando aos pais que seria apenas uma medida para ter certeza que nenhuma criança doente deixaria de ser acompanhada. Pode ser que no decorrer do tempo se chegue à conclusão que é seguro usar os 32 cm como medida de corte, mas, neste momento, em que se sabe tão pouco do vírus écom certeza uma medida precoce e que tem como único objetivo diminuir custos.

Diante da epidemia, as mulheres trabalhadoras e seus filhos são os principais penalizados!

Neste momento a única solução dada pelo MS às mulheres grávidas é evitar as picadas de mosquito: “Evite horários e lugares com presença de mosquitos; Sempre que possível utilize roupas que protejam partes expostas do corpo; Consulte o médico sobre o uso de repelentes e verifique atentamente no rótulo as orientações quanto à concentração e frequência de uso recomendada para gestantes; Permanecer, principalmente no período entre o anoitecer e o amanhecer, em locais com barreiras para entrada de insetos como: telas de proteção, mosquiteiros, ar-condicionado ou outras disponíveis.” E ir ao médico se houver alguma alteração no seu estado de saúde...5
Por mais que tomem todos esses cuidados, não é possível garantir que não vai sofrer nenhuma picada de mosquito durante os 4 ou 5 meses que dura a época de atividade do Aedes aegypti, ou seja todas as mulheres grávidas neste momento, por mais cuidadosas que sejam, correm risco real de ser infectadas pelo vírus zika e ter um filho com microcefalia.
Mediante esta realidade, no passado dia 12 Novembro, o diretor do departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, Cláudio Maierovitch, deu o seguinte conselho às mulheres brasileiras: “Não engravidem agora. Esse é o conselho mais sóbrio que pode ser dado”[9]. Tenho acordo com o conselho, eu e muitos médicos clínicos gerais, obstetras e pediatras que têm sido questionados, respondem: “Por favor não engravide agora!”. A pergunta que se segue é como?? Como garantir que não se engravida num país em que a distribuição de contraceptivos gratuitos é tão deficiente? Onde pouquíssimas mulheres têm condição econômica de ter acesso a contracepção que não exige toma diária e que por isso é muito mais segura (anel vaginal, adesivos cutâneos, DIU hormonal e de Cobre)?
Tendo noção do paradoxo o ministério da saúde apressou-se a soltar uma nota, no dia 13 Novembro, contrariando Cláudio Maierovitch: “Não há uma recomendação do Ministério da Saúde para evitar a gravidez. As informações estão sendo divulgadas conforme o andamento das investigações. A decisão de uma gestação é individual de cada mulher e sua família.”
Deveria ser uma decisão individual de cada mulher e sua família mas não é! A mulher que engravida de forma acidental não pode tomar mais nenhuma decisão, o estado já tomou por ela proibindo o aborto.
Essa proibição hoje se torna ainda mais trágica pois não é só a perspectiva de ter um filho não planejado mas também um filho que pode ter enormes problemas de saúde e que vai necessitar de um acompanhamento médico que muitas famílias trabalhadoras não têm condições de proporcionar. Segundo a chefe do serviço de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz de Recife, Angela Rocha, “é necessário garantir que pais e cuidadores não tenham uma queda muito significativa nos rendimentos. Isso porque a rotina de tratamento desses bebês é intensa. Pais terão de levá-los às consultas muita vezes durante o horário de trabalho.”1
Mesmo que se tenha acesso aos melhores contraceptivos nenhum deles é 100% seguro, inclusive quando são usados corretamente falham e podem ocorrer gravidezes indesejadas. Acreditamos que agora, mais do que nunca, é fundamental que as mulheres possam escolher se querem ter um filho, correndo o risco de ser infectadas pelo Zika, ou se não querem correr esse risco, e nesse caso devem ter acesso a realizar um aborto no SUS, gratuito e em segurança.

Por isso, exigimos dos governos medidas concretas para combater o Aedes aegipty e o Zika vírus:
1.               Colocar em prática desde já um plano consequente para o combate ao Aedes aegipty, com medidas de efeito a curto e longo prazo, que passam por contratação massiva de agentes de saúde para a eliminação de focos de reprodução do mosquito, limpeza de descampados especialmente nas áreas urbanas, eliminar todos os lixões a céu aberto, construção de rede de esgoto e saneamento básico em todas as cidades e que sirvam a toda a população;
2.               Disponibilização de todos os recursos financeiros necessários para a pesquisa científica, em instituições estatais, sobre o vírus Zika inclusive para o possível desenvolvimento de uma vacina;
3.               O governo deve distribuir gratuitamente repelentes de qualidade para toda a população, mas de forma prioritária às mulheres grávidas;
4.               Fornecimento gratuito a todas as mulheres em idade reprodutiva de todos os contraceptivos disponíveis, em especial os que não necessitam de toma diária e que por isso tornam-se mais seguros (anel vaginal, adesivos cutâneos, implante subcutâneo, DIU hormonal e de Cobre);
5.               Legalização do aborto por malformação do feto até às 24 semanas de gestação. Todas as grávidas em que for diagnosticada ou houver suspeita de infecção pelo vírus Zika devem ter opção de realizar um aborto, gratuito e pelo SUS, até às 24 semanas de gestação;
6.               Legalização do aborto até às 12 semanas para todas as mulheres que não desejarem engravidar;
7.               Todas as grávidas que não tiverem sintomas devem fazer o teste para saber se estão infectadas com vírus Zika no primeiro e segundo trimestre. A ultra-sonografia morfológica deve passar a ser obrigatória e deve ser realizada entre as 18 e 22 semanas para diagnóstico de microcefalia. No caso de dúvida as mulheres que desejarem devem poder realizar a detecção do vírus no liquido amniótico;
8.               Disponibilização dos melhores tratamentos gratuitos para as crianças com microcefalia  e outras mal-formações congênitas. O governo deve fornecer um subsidio que garanta que as famílias têm todas as condições econômicas de criar os seus filhos com dignidade. Garantia de estabilidade no emprego para todos os pais e mães de crianças com microcefalia e outras malformações congênitas.
9.               Para que possa ser dado o melhor atendimento à classe trabalhadora e em especial às grávidas neste momento exigimos 10% PIB para o SUS já!
Todas essas medidas devem ser incluídas como demandas das lutas da classe trabalhadora, pois só dessa forma conseguiremos garantir com que seja prioridade máxima a vida e a saúde da população, e não os lucros de banqueiros e empresários.

Por Maria Costa, médica e ativista do MML MG 


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